quarta-feira, julho 30, 2008

Karadzic: perguntas a respeito de uma fuga de onze anos

Christophe Châtelot
Em Belgrado, Sérvia


Travestido de doutor Dragan David Dabic, um guru "new age" de medicina alternativa, Radovan Karadzic passava despercebido no Ruda Kuca. Este barzinho, cujo nome, bem escolhido, significa "Casa maluca" é um pequeno estabelecimento comum e pouco reluzente plantado na periferia de um bairro de prédios sem graça e anônimos da nova Belgrado. Nele, no decorrer dos nove meses que antecederam a sua prisão, em 21 de julho, o falso doutor Dabic testou em várias oportunidades a eficiência do seu disfarce, desafiando com insolência os investigadores do mundo inteiro, ao freqüentar uma clientela de fato embebida mais que de razão de álcool de ameixa, mas nem um pouco cega.

Vale reconhecer que é difícil estabelecer a relação entre o "doutor Dabic", um curandeiro magnetizador de 63 anos, barbudo e cabeludo, que prometia curar toda e qualquer doença - dos problemas sexuais aos reumatismos -, e o homem do retrato que estava dependurado no alto, numa parede do bar. Naquele retrato, que havia sido colocado entre as fotos do antigo presidente sérvio Slobodan Milosevic (1941-2006) e de Ratko Mladic, o antigo chefe militar dos bósnio-sérvios durante a guerra da Bósnia (1992-1995), Radovan Karadzic aparece com o cabelo comprido e revolto, trajando um macacão de camuflagem caqui, na época em que ele presidia a entidade sérvia da Bósnia. "Eu não conhecia Radovan Karadzic; conhecia sim Dragan Dabic, o médico eloqüente que tratou uma criança autista", jura, não por acaso, Misko Kovijanic, o patrão do bar, exibindo orgulhosamente a sua "guzla", um instrumento tradicional de uma corda só, que o doutor Dabic gostava de ouvir. "Karadzic é um ator", explica o sociólogo Zarko Trebjecanin.

Nada permite apontar precisamente a data em que foi tirada a foto que pairava acima do bar. Era durante a guerra, mas terá sido antes, durante ou depois do sítio de Sarajevo (1992-1995), ou ainda do massacre dos 7.000 muçulmanos de Srebrenica (1994), por conta dos quais ele foi inculpado de genocídio em 1995 pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPIY)? "Eu não conhecia Radovan Karadzic, mas sim um médico que me fez descobrir o mundo da medicina alternativa", responde Mila Cicak, uma mulher morena que desmente os artigos na imprensa, nos quais ela é apresentada como a sua amante. "Eu tampouco o escondia", explicou Mila em entrevista à Associated Press.

Um dos homens mais procurados do mundo, cuja cabeça havia sido colocada a prêmio pelos americanos, valendo uma recompensa de US$ 5 milhões (cerca de R$ 8 milhões), se fundira no meio do cenário daquele bairro popular, um feudo dos ultranacionalistas do Partido Radical. Longe das montanhas da Bósnia ou dos mosteiros ortodoxos onde as tropas da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) o acossavam desde que ele mergulhara na clandestinidade, no início de 1998.

Em Novi Beograd, ele morava não longe do Ruda Kuca, no terceiro andar de um bloco de concreto. "Com quatorze andares onde moram 97 famílias, este é o lugar ideal para os criminosos como ele se esconderem, ou como aqueles, ordinários, do bando de Zemoun (um bairro da periferia de Belgrado)", explica um habitante. "Ele tinha pelo menos quatro esconderijos em Belgrado que estavam sendo vigiados havia várias semanas", confirma um agente de um serviço secreto ocidental.

Segundo a versão oficial, o doutor Dabic foi interpelado na segunda-feira (21) por três membros dos serviços secretos sérvios num ponto de ônibus, da linha 73 do seu bairro. Trajando um terno desgastado e falando com o olhar afogado em meio aos vapores do álcool, o advogado de Radovan Karadzic, Svetozar Vujacic, garante por sua vez que o seu cliente foi "detido dentro de um ônibus, na sexta-feira, e transportado, com os olhos vendados, rumo a um destino desconhecido; neste lugar, ele foi bem tratado durante três dias por um grupo de homens que queriam provavelmente receber os US$ 5 milhões da recompensa".

Ele acrescentou até mesmo que o seu cliente, no momento em que foi preso, estava de partida para uma viagem de férias, no litoral croata. Ele estava carregando um computador portátil, uma mochila nas costas que continha livros e tinha 600 euros (cerca de R$ 1.500) no bolso. "Até então, havia muitos rumores; agora, o objetivo é de induzir dúvidas em relação ao caráter legal da sua prisão, de modo a alimentar uma contestação popular, só que esta não está ocorrendo", analisa Bruno Vekaric, um porta-voz do procurador no tribunal especial da Sérvia para os crimes de guerra. A oposição nacionalista convocou uma manifestação, na terça-feira em Belgrado.

Dejan Anastasijevic, um respeitado jornalista especializado que escreve sobre as questões de segurança na publicação semanal "Vreme", tampouco acredita na versão oficial como se ela fosse a pura verdade, mas não considera isso como um ponto essencial. "Quais foram os serviços secretos que o prenderam: a Segurança do Interior (BIA) ou os "cobras" do exército?", se pergunta, contudo, este jornalista. Ele não exclui, tampouco, que a interpelação tivesse ocorrido na sexta-feira, "com a intenção de interrogar tranquilamente Karadzic, que é um tagarela; além de tudo, isso deu uma folga que permitiu deixar que os deputados partissem em férias, evitando o perigo de que a oposição radical (ultranacionalista) interviesse na tribuna do Parlamento para denunciar a prisão".

Segundo a avaliação do jornalista, que foi confirmada por outras fontes em Belgrado, uma interceptação de uma ligação telefônica que ocorreu há dois meses, entre conhecidos ex-membros das equipes de Radovan Karadzic e Ratko Mladic no tempo da guerra da Bósnia, teria permitido encontrar o paradeiro do doutor Dabic. "Eles provavelmente não sabiam qual dos dois iriam encontrar, mas, por uma vez, eles fizeram o seu trabalho", acrescenta.

Isso porque, apesar dos seus talentos de ator, Radovan Karadzic pôde contar com a cumplicidade passiva de vários aliados que haviam atuado no âmbito do regime anterior, ou mesmo com cúmplices ativos, como aquele funcionário que lhe permitiu obter a segunda via da cédula de identidade de um aposentado vivinho da silva chamado Dragan Dabic. "Os tempos mudaram", afirma Oliver Dulic, um antigo presidente do Parlamento, ministro do meio-ambiente e conselheiro do atual presidente Boris Tadic. "Pela primeira vez desde a queda de Slobodan Milosevic em outubro de 2000, o poder não está dividido. Boris Tadic e o seu Partido Democrata (DS) seguram todas as cartas em suas mãos", confirma um diplomata ocidental.

Desde a vitória do DS nas legislativas de maio, Rade Bulatovic, um sobrevivente da era Milosevic e um aliado do antigo primeiro-ministro nacionalista Vojislav Kostunica, foi substituído no comando do BIA por um jovem profissional acima de qualquer suspeita, Sacha Vukadinovic. Nos últimos tempos, o conselho de cooperação com o TPIY passou a se reunir cotidianamente. O tribunal especial e seus funcionários contam com uma forte proteção. "Os serviços de segurança passaram a atender as ordens de um único patrão, o presidente, e eles começaram a se dedicar a uma busca sistemática", comemora Dejan Anastasijevic.

Agora, o objetivo é de prender os dois últimos criminosos de guerra que ainda estão foragidos, Ratko Mladic e Goran Hazic, este último sendo o antigo chefe da República sérvia autoproclamada de Krajina, na Croácia. Ou, ao menos, trata-se de convencer a União Européia de que tudo está sendo feito para alcançar este resultado, de modo a levantar este que constitui um obstáculo para a incorporação da Sérvia à União Européia, a qual se tornou a prioridade máxima do governo.

Na quinta-feira (24), dentro da célula do tribunal especial de Belgrado onde ele seguiu aguardando a sua transferência para uma célula em Haia (na Holanda, onde está a sede do TPIY), o que ainda não havia ocorrido na segunda-feira (28) o doutor Dabic havia recuperado o seu rosto. Ele estava de barba feita, penteado, emagrecido, como na foto do Ruda Kuca, um barzinho que está prestes a se tornar um local de peregrinação para alguns poucos incondicionais, e um ponto de encontro para muitos outros curiosos. "Eu me pergunto qual será o bar predileto de Mladic em Belgrado", ironiza um cliente.

Ratko Mladic, conhecido como "o açougueiro de Srebrenica", foi visto ao menos duas vezes na capital sérvia: em 2000, nas arquibancadas durante uma partida de futebol, e em 2003, no hospital militar da cidade onde comparecera para submeter-se a uma cirurgia benigna. "Nós vamos terminar o trabalho", promete Oliver Dulic.

Tradução: Jean-Yves de Neufville (UOL)

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