sábado, novembro 24, 2007

O português no mundo árabe

Fonte: Revista Língua Portuguesa

14/11/2007


Refugiados palestinos que estudaram Português chegam ao Brasil e mostram os primeiros sinais de avanço da língua portuguesa no Oriente

Adriana Natali


No fim do mês passado, 38 palestinos desembarcaram em São Paulo, na primeira leva de refugiados vinda do campo de Ruweished, na Jordânia, a 70 quilômetros da fronteira com o Iraque. Eles serão reassentados em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde o Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) trabalha em parceria com as organizações Cáritas e Associação Antônio Vieira.


Nos quatro anos em que estiveram na Jordânia, os refugiados iraquianos se prepararam para viver no Brasil. O fator decisivo dessa preparação foi o aprendizado da língua portuguesa. O ensino do português a palestinos expulsos do Iraque após a invasão anglo-americana promete se ampliar na Jordânia. Um lote do recém-lançado Português para Falantes de árabe (editora Almádena), por exemplo, acaba de ser encomendado pelo Acnur. A obra é organizada por João Baptista M. Vargens, da UFRJ.


Mas em todo o mundo árabe, a nossa língua está se expandindo graças à implementação do ensino do português em colônias e universidades de alguns países, como a Síria. A divulgação do idioma e da cultura do Brasil entre os árabes começou a ganhar força em 2003, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva firmou um protocolo de intenções que consagrava a abertura de cursos de português em universidades locais.


Foi, no entanto, após a Conferência da ASPA (América do Sul - Países Árabes), promovida pelo Brasil em 2005 para aproximar as regiões, que o ensino do português ganhou, de fato, relevo.


- É no Líbano, seguido pela Síria, em razão de sua ligação com as comunidades sírio-libanesas no Brasil, que a necessidade do ensino do português ainda deve se fazer sentir de maneira mais sensível - explica o embaixador do Brasil na Síria, Eduardo Monteiro de Barros Roxo.


No início de 2006, dando seqüência à visita presidencial à Síria, o ministro da Educação, Fernando Haddad, prometeu a implementação da cadeira de língua portuguesa na Universidade de Damasco.


Doutor em Lingüística Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e professor do Setor de Estudos Árabes da UFRJ, João Baptista Vargens esteve na Síria, a convite do governo local, em abril do ano passado, para verificar as áreas de atuação para possíveis acordos entre a UFRJ e as principais universidades sírias.


- Especificamente, constatei os diversos métodos de ensino de línguas estrangeiras utilizados no Instituto de Idiomas da Universidade de Damasco.


Em Damasco


Nos meses seguintes, o MEC e a embaixada da Síria promoveram estudos para viabilizar o curso de português em Damasco. A professora Paula Caffaro, formada em Letras (português-árabe) na UFRJ, ministrou este ano dois dos primeiros cursos de português na universidade, para cerca de 20 alunos.


- A maioria dos alunos tem alguma ligação com o Brasil, ou são descendentes ou têm relação de trabalho. Os alunos são interessados e não encontram muitas dificuldades com o idioma, somente os verbos dão mais trabalho a eles - conta Paula.

Alguns alunos são brasileiros que não conheciam a língua portuguesa. Nasceram no Brasil e, ainda pequenos, foram para a Síria com os pais imigrantes, mas agora resolveram retornar à terra natal.


De acordo com o embaixador Eduar­do Roxo, este é o início das ações com cursos de português na Universidade de Damasco. Espera contar de forma regular com professores especializados e verificar a ampliação da demanda.


- O Brasil está à procura de mercados alternativos fora do eixo europeu-americano e se aproxima dos países árabes. Nós, professores de português e árabe, temos a obrigação de participar, contribuindo dentro de nossa área de atuação. Além desse interesse pontual, devemos nos lembrar dos laços históricos que temos com os árabes, via península ibérica e imigração síria e libanesa no Brasil - explica Vargens.



O professor estima que existam mais de 12 milhões de árabes e descendentes radicados no Brasil. Para ele, é preciso que seja implementada uma política conjunta entre o Ministério da Educação e o Itamaraty para que haja o incentivo da difusão do português do Brasil no mundo, nos moldes do Instituto Camões, em Portugal, o Cervantes, na Espanha, os centros culturais franceses, entre outros.


- A semente já foi plantada no Brasil, por meio do Instituto Machado de Assis, uma iniciativa do governo atual para ampliar a divulgação de nossa língua e cultura. Todavia, até agora, o instituto só existe no papel e não recebeu dotações orçamentárias para funcionar. Acredito que o que falta é uma ação segura, concreta, para que o Instituto Machado de Assis se torne realidade - explica.


Desafios


A produção do material didático usado hoje em universidades como a de Damasco e em campos de refugiados surgiu da experiência vivida por Vargens entre 1992 e 1994, quando ele ensinava português e cultura brasileira na Universidade Abdel Malik Essaadi, em Tetuão, no norte de Marrocos.


- Usava métodos de português para estrangeiros em geral e, muitas vezes, sentia a necessidade de confrontar aspectos da gramática das duas línguas, para salientar as diferenças. Em tais momentos, percebia quão importante seria a criação de um método próprio para árabes, os alunos teriam mais facilidade - explica o professor.


Português para Falantes de Árabe contextualiza em livro e CD 26 lições com a cultura brasileira, a partir de datas significativas do calendário nacional, como o Ano Novo, o carnaval e até o Dia da Consciência Negra.


O material foi escrito por Vargens e ex-alunas, como Geni Harb, Suely Ferreira Lima, Bianca Graziela da Silva e Heloisa Ellery de Menezes.


Muitas palavras da língua portuguesa têm origem árabe, dado o longo período de ocupação muçulmana, seja em Portugal (711-1249) ou na Espanha. Os sete séculos de dominação moura deixaram marcas na linguagem, especialmente em áreas como artesanato e agricultura. A influência lin­güí­s­tica que eles exerceram sobre a península ficou restrita ao léxico. Há inúmeras diferenças entre a gramática do árabe, uma língua semita, e a do português, idioma latino.


Por exemplo, o verbo árabe tem flexão de gênero, não existente na língua portuguesa. Há, também, no verbo árabe as flexões de número: singular, plural e dual, esta referente a duas unidades. Em português não existe o dual.


- Tais fatos demonstram a importância do estudo contrastivo entre as gramáticas da língua materna e da língua estrangeira que o aluno deseja aprender - explica Vargens.


Sete séculos


O namoro atual entre o português e o mundo árabe resgata, por tabela, a influência que o nosso idioma recebeu dos povos de fala árabe. Segundo Miguel Nimer, num importante estudo editado inicialmente em 1943 e reeditado em 2005 (Influências Orientais na Língua Portuguesa, pela Edusp), a península ibérica tinha profundas diferenças de raças e religião. Por isso, e apesar da ocupação ininterrupta de séculos, os povos conquistados não adotaram a língua do vencedor. O conquistador, por sua vez, "não houve por bem ou por mal, pela imposição de sua língua, usar de seu direito de conquista", defende Nimer. Com a indiferença e o total desprezo dos ocupantes árabes, não houve assimilação. A presença árabe é por isso modesta no espanhol e no português.


A difusão de vocábulos árabes nas línguas da Europa, adverte Nimer, não ocorreu devido à conquista dos muçulmanos, mas foi resultado da propagação e da vitalidade de toda uma civilização: a da cultura árabe, que é ainda uma fonte de mistérios para os falantes do português.


Palavras de origem árabe


Houve três períodos, com limites imprecisos, em que as palavras de origem árabe ou introduzidas por via árabe, entraram na língua portuguesa. O mais forte foi a presença muçulmana na península ibérica por oito séculos. Outro começou com a conquista de Ceuta pelos portugueses em 1415 e com a expansão portuguesa que durou até o século 18. O último veio até nossos dias por meio de empréstimos, principalmente do italiano e do francês.


Fato curioso são as palavras de origem árabe que tomaram acepções diferentes no Brasil e outras que entraram na língua como autênticos brasileirismos, não constando do vocabulário português, europeu e africano. Essas palavras foram incorporadas à língua pela presença negro-muçulmana no Brasil e pela imigração árabe, principalmente síria e libanesa.

Açafrão (azzafaran, amarelo)
Açougue (assok)
Açúcar (assukar deriva do sânscrito çarkara, grão de areia)
Álcool (alkohul, coisa sutil)
Alface (al-khaç)
Algarismo (alkawarizmi, nome do matemático árabe Abu Ibn Muça)
Álgebra
Azeite
Azeitona
Café
Damasco
Garrafa (garrafâ, frasco bojudo)
Harém
Haxixe
Limão (laimun deriva do persa limun)
Mesquita (masdjid)
Oxalá (in sha allah ou inshallah ou ua xá illáh, queira Deus)
Salamaleque (substantivo proveniente da fórmula de saudação árabe "as-salam'alaik", a paz esteja contigo!)
Xarope (sharab, bebida, poção)


Um texto com arabismos


No I Festival da Cultura Árabe, promovido pela Liga dos Estados Árabes no Brasil, em 1972, o professor Antônio José Chediak - um dos fundadores da Academia Brasileira de Filologia - mostrou o uso corrente das palavras de origem árabe em nosso idioma em texto de sua autoria. Embora destacados por Chediak, o professor Vargens afirma que há controvérsias sobre a etimologia árabe de "cabidela", "cáqui", "chita", "jeropiga" e "troço".


"Uma história. Suponhamos, primeiramente, um casal com um filho, em algum lugar do Brasil. Altair, recém-casada, mora nos arrabaldes ou arrebaldes de uma aldeia do interior, põe o seu vestido de chita e o xale. Pega o garoto, um azougue de menino, lava-o e passa-lhe talco. Se o garoto tosse, dá-lhe uma colher de xarope, empapa o algodão em cânfora ou alcânfora e faz massagem nas suas costas. Vai à cisterna, prende a azêmola na argola da manjorra, põe água na modesta jarra. Vai fazer café e adoça-o com saboroso açúcar-cândi. O marido, um mameluco, conhecido pela alcunha Boca-Torta, bem cedinho, já se levanta com alguns achaques-enxaqueca, põe as ceroulas (no interior muita gente ainda as usa), o terno cáqui, bem lavadinho com anil, toma um trago de conhaque de alcatrão São João da Barra ou, se não o tem, vai ao alambique, sorve um gole de jeropiga. Toma a tarrafa e vai pescar no açude.


Outras vezes, prefere caçar javali; limpa o azinhavre da espingarda de grosso calibre, sai com o fraldigueiro chamado Sultão e volta com algumas arrobas de carne às costas. À hora do almoço, Altair lhe traz umas azeitonas. Senta-se com ele, e principiam uma salada de alface bem regada a azeite. Vêm depois o espinafre, a cabidela, a carne ou peixe escabeche, ou com alcaparra, que ingere com arroz bem soltinho. Ela lhe oferece um prato com acelga ou celga, que rejeita. Prefere alcachofra, por causa do fígado. Vai tomando refresco de tamarindo. À sobremesa, uma boa laranja seleta.


Terminado o almoço, descansa, recostando a cabeça na almofada. A casa é modesta, de adobe, mas o alicerce é firme. As janelas não têm alizares. Num pequeno jardim, florescem açucenas ou cecéns e alecrim. Depois da sesta, sai a trabalhar. Mete algum dinheiro na algibeira, algum alimento no alforje e segue para o campo. Tem alguns alqueires de terra. De volta, pára no alfaiate para experimentar um terno. Depois, entra no armazém para algumas compras. Muita gente. Azáfama. À saída, um pobre, cheio de salamaleques, pede-lhe esmola. Não é um nababo, mas também não é um mesquinho. Dá-lhe uns níqueis. Um troço de policiais, com vistosos dólmans, passa ao som de tambores, caminho do aljube. É o reforço que chega. A região foi invadida por uma cáfila de assaltantes. O mameluco tira o chapéu. Passa um ataúde a caminho do cemitério. E retorna à casa."

segunda-feira, novembro 12, 2007

Museu do Holocausto homenageia muçulmanos

O Museu do Holocausto (Yad Vashem) de Jerusalém inaugura uma exposição sobre os muçulmanos que salvaram judeus durante a 2ª Guerra Mundial. Serão exibidas fotos de mais de uma dezena de albaneses com suas famílias em mais uma homenagem. Todos já receberam o título de “Justos entre as Nações”, a maior honraria concedida pelo Yad Vashem aos que arriscaram suas próprias vidas para salvar a de judeus. A mostra intitula-se “BESA: A Code of Honor - Muslim Albanians Who Rescued Jews During the Holocaust”. Viviam na Albânia, antes da 2ª Guerra, apenas duzentos judeus. Com a ascensão de Hitler ao poder para lá afluíram outros da Iugoslávia, Alemanha, Grécia, Áustria e Sérvia. Com a ocupada em 1943, a população se recusou a fornecer aos alemães as listas dos judeus. A ajuda salvadora naquele país predominantemente muçulmano recebeu o codinome de “Besa” – um código de honra que significa “mantenha a promessa”. Praticamente todos os judeus residentes na Albânia durante a ocupação nazista foram salvos. Ao final da guerra havia mais judeus do que antes do conflito. “A extraordinária história da Albânia, onde toda a nação, tanto governo quanto o povo agiu para resgatar os judeus é verdadeiramente extraordinária”, disse o curador da exposição Yehudit Shendar.

Fonte: Jerusalém Post

sábado, novembro 03, 2007

Mecca-Cola

Mecca-Cola quer ser parceira de usina no Brasil

Fabiane Stefano*


A Mecca-Cola, marca de refrigerantes que disputa mercados com as gigantes Coca e Pepsi no mundo árabe, quer fazer uma parceria com uma usina no Brasil. Grande consumidora de açúcar, a Mecca-Cola quer comprar diretamente dos brasileiros o que hoje ela negocia com os traders internacionais. Sediada em Dubai, a empresa comprou no ano passado 150 mil toneladas da commodity. Além do açúcar, o dono da Mecca-Cola, o tunisiano Taoufik Mathlouthi, quer expandir os negócios para a área de energia. "Vivo na terra do petróleo e agora quero investir no petróleo do futuro", diz ele, que pretende negociar etanol no Oriente Médio.

Mathlouthi veio ao Brasil para participar do Sugar Dinner, que aconteceu na semana passada em São Paulo, onde foi paparicado por usineiros e corretoras. É a terceira viagem do empresário ao país. No roteiro, Mathlouthi aproveitou para visitar quatro usinas no interior de São Paulo, entre elas a Colombo. Além da parceria com uma usina, Mathlouthi negocia uma joint-venture com uma empresa engarrafadora de refrigerantes no Rio de Janeiro - possivelmente, a Schincariol. A idéia é usar o Brasil como plataforma para exportações para a América Latina. Criado em 2002, a Mecca-Cola nasceu como uma forma de resistência à política externa americana. Parte dos lucros da empresa patrocinam a causa palestina.

Em tempo: Mathlouthi é dono também da marca Mecca-Coffee, que comercializa café da Costa Rica e Etiópia no Oriente Médio. Ele também está de olho nos grãos brasileiros...


*Fabiane Stefano é repórter de EXAME e escreve sobre o agronegócio

quinta-feira, novembro 01, 2007

Maior tapete do mundo



Irã inaugura maior tapete do mundo na mesquita Khomeini, em Teerã; a peça tem 5.625 metros quadrados, vale US$ 5,8 milhões e foi confeccionada por 1.200 pessoas durante 18 meses -- Reuters (2007)

Outras Culturas

Por que o Ocidente despreza o Islã
Le Monde Diplomatique

Nas simplificações grosseiras sobre o mundo árabe, a vítima oculta somos nós mesmos. Ao projetarmos sobre o outro nossa visão de atraso, intolerância e fundamentalismo, não enxergamos como estão sob ameaça os melhores valores de nossa civilização


Cláudio César Dutra de Souza
, Sílvia Ferabolli


Khaled Hosseini é um fenômeno editorial. Suas duas últimas publicações, O Caçador de Pipas e A Cidade do Sol, figuram nas listas dos mais vendidos nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil. A obra de Hosseini é lida por um público ávido por entender como vivem “os muçulmanos”. E ele parece cumprir muito bem o seu papel de (des)informar leigos pelo mundo sobre o que vem a ser o modus vivendi islâmico.

Talvez essa não tenha sido a intenção do autor. Em seus livros, ele parece ser muito claro em situar seus personagens no interior do Afeganistão, mas como o entendimento dos conceitos religiosos, étnicos e de identidade nacional que definem muçulmanos, árabes e afegãos não é o forte da maioria da população, acabam todos sendo identificados, sem distinção, como seguidores do Islã. Essa associação não é de todo incorreta, já que a maioria dos árabes são muçulmanos, assim como o são os afegãos. O grande problema é associar o Islã com os segmentos mais retrógrados e atrasados da sociedade afegã – algo como definir o cristianismo como a religião que queima mulheres e hereges em fogueiras, permite a escravidão e silencia frente aos horrores do holocausto.

Em seu Orientalismo, Edward Said mostrou como a representação literária dos povos orientais, especialmente dos muçulmanos, como bárbaros, primitivos, violentos, decadentes e irracionais legitimou os interesses dos grandes poderes da era colonial. No pós-11 de setembro, a mídia de massas retoma o projeto orientalista e passa a demonizar os muçulmanos com vistas a iniciar um novo ciclo histórico de dominação e subjugação, agora comandado pelos Estados Unidos. Árabes, afegãos, paquistaneses, indonésios, indianos, enfim, qualquer indivíduo que ostente um turbante ou véu na cabeça, ou que pelo menos pareça alguém que usaria esse tipo de vestimenta, é quase que automaticamente definido como fanático, fundamentalista, atrasado e, a palavra do momento, terrorista. O entendimento do cidadão médio, filtrado por aquilo que deve ser mostrado, constrói um Islã wahabista, pleno de explosivos Osamas e reprimidas mulheres sob véus; um povo que corta mãos de ladrões, apedreja condenados até a morte e proíbe, tal como os talibãs, qualquer forma de prazer e diversão. Não é a toa que temos O Livreiro de Cabul, Mulheres de Cabul, qualquer coisa de Cabul vira best-seller e abastece o imaginário de milhões de cidadãos no Ocidente que se horrorizam e se deliciam com esse tipo de representação do “muçulmano”.


Uma época na qual a racionalidade parece estar em extinção

Além de servir às práticas de dominação política, militar e cultural norte-americana, essas projeções do “outro” também servem para reforçar a nossa suposta normalidade em face de um contraponto tão bizarro. Gostamos de nos imaginar como filhos da modernidade, livres de superstições e paixões primitivas que um dia fizeram parte da nossa história, mas que hoje, enfim, libertos, avançamos em direção a uma liberdade nunca dantes sonhada, liberdade essa que foi duramente atacada em 11 de setembro de 2001 pelos fanáticos de Allah.

Mas, sejamos pragmáticos: o que o mundo livre tem a ver com dois prédios destruídos em Nova York ou o que eles simbolizavam? Ficamos menos livres a partir daquele momento? Estamos sendo ameaçados? A resposta, se é que existe apenas uma, seria que, efetivamente, uma parte do mundo está menos “livre”, mas isso diz respeito àqueles poucos que gozam dessa liberdade tão duramente conquistada através de séculos de exploração colonial, invasões e desrespeito à soberania de inúmeros povos, que agora se insurgem de uma forma desagradável para quem pensava que a história havia chegado ao seu fim com o triunfo do capitalismo liberal. Não estaríamos nos focando excessivamente no chamado “fanatismo religioso” muçulmano e esquecendo que vivemos em uma época no qual a racionalidade parece estar em extinção? Fanáticos islâmicos versus fanáticos judeus e suas intermináveis políticas fratricidas; fanáticos católicos irlandeses e norte-americanos; fanáticos amishes; um renascido em Cristo na Casa Branca e um Papa de passado duvidoso, tão ou mais fundamentalista em sua leitura tendenciosa do mundo contemporâneo quanto o mais caricato dos Aiatolás.

Fanáticos os temos para todos os gostos, com a diferença, alguém notará, que “os nossos” não explodem. Ledo engano. Norte-americanos e israelenses explodem a tudo e a todos que ousem ir contra os seus “interesses de Estado”. Os Estados Unidos “previnem” e Israel “se defende”, exatamente do quê? Sim, dos bárbaros, fanáticos e torpes muçulmanos cuja diversão e meta suprema são a de destruir a cultura e a liberdade democrática do Ocidente e, neste ínterim, vão todos à mesma vala comum, do intelectual muçulmano (sim, eles existem!), à mãe de família árabe chegando ao talibã mais raivoso, passando pelos casseurs franceses e suas demais ramificações européias – e contra todos eles é lançado o anátema de terroristas ou fanáticos muçulmanos, em uma das mais absurdas e brutais demonstrações de racismo, ignorância e manipulação midiática da atualidade.


Como se em nossa sociedade as mulheres vivessem em integridade absoluta

O modo como as mulheres muçulmanas são tratadas constitui-se em um escândalo, como se em nossas sociedades as mulheres vivessem em um patamar de integridade absoluto e não fossem estupradas, agredidas e mortas, não bastando isso, ganhassem menos, mesmo trabalhando mais do que os homens, e ainda tendo de se submeter a todo o tipo de tratamento estético, cirúrgico e dietético que já ceifaram a vida de milhares de fêmeas modernas – mortes nas mesas cirúrgicas de lipoaspiração; morte por distúrbios alimentares como bulimia e anorexia; morte por intoxicação de produtos químicos fortíssimos que visam alisar, afinar, reduzir, rejuvenescer e infantilizar cabelos, corpos e mentes.

Durante a guerra da Bósnia, dentre as tantas atrocidades perpetradas contra o povo muçulmano, talvez a pior tenha sido aquela cometida contra suas mulheres. Segundo Tadeusz Mazowiecki, investigador de Direitos Humanos da ONU, que se afastou do cargo em protesto contra a impotência da organização frente aos horrores da guerra, a "limpeza étnica" não foi resultado de ações militares, mas o objetivo principal do conflito. Os sérvios, na sua maioria cristãos ortodoxos, usaram o estupro sistemático como arma de terror para obrigar a população não-sérvia a deixar a região. Mais de 20 mil muçulmanas foram violentadas. Houve casos de mulheres inválidas torturadas com tesoura e cacos de vidro antes de serem mortas. Algumas mulheres escaparam da morte, mas não da humilhação. Quando se viram grávidas de seus estupradores, o bom Papa João Paulo II exortou-as piedosamente a não abortarem essas inocentes vidas, sob ameaça de excomunhão e de uma ida sem retorno para um lugar bem quente no outro mundo...

Aliás, a igreja católica não flexibiliza a proibição do aborto em casos de estupro, nem em casos de fetos anencéfalos e muito menos se a gravidez trouxer risco de vida à mãe. Efetivamente, o cristianismo representado pelo Vaticano não se constitui em nenhum exemplo de tratamento às mulheres que o faça estar em posição de tecer críticas ao Islã. Da mesma forma que não pode endossar a falácia de que o Corão exorta a violência, o genocídio e a usurpação e que a expansão islâmica se fez através da morte, da chacina e do roubo (a propósito: você já leu o Corão?). É necessário recordar que a expansão do cristianismo foi forjada no aço das espadas e à custa de milhões de vidas perdidas e, apesar da recomendação de amor ao próximo dos evangelhos canônicos, a imagem que parece ter sido desenvolvida pelo apologista Paulo de Tarso foi a do Cristo da Espada, o que expulsou os vendilhões do templo a chibatadas, um discurso bem mais palatável para um agonizante e bélico império Romano recém convertido por razões bem mais políticas do que de fé (a propósito: você realmente conhece a história do cristianismo?).


Hannah Arendt já denunciava lobby sionista e superfaturamento do Holocausto

Quanto aos judeus, se foram perseguidos também foram perseguidores e, como “povo eleito” foram intolerantes contra os “não eleitos”, vide a vergonhosa política israelense em relação aos palestinos, confinados em bantustões, segregados, marginalizados e humilhados em nome da proteção dos cidadãos de Israel – mas quem protegerá os palestinos do terrorismo de Estado israelense? (a propósito: você lê jornais?) Na década de 1960, Hanna Arendt já denunciava o lobby da comunidade sionista norte-americana em prol de Israel, o superfaturamento do Holocausto e a participação dos conselhos judaicos na eliminação de seu próprio povo na Alemanha nazista, o que lhe rendeu censuras e ameaças, semelhantes àquelas que Norman Finkelstein recebeu ao publicar A Indústria do Holocausto na década de 1990, denunciando o devir persecutório dos perseguidos além de uma série de outras distorções políticas e ideológicas que infelizmente fazem sofrer não apenas o povo palestino como igualmente a população judaica e israelense, à mercê da manipulação de sua própria história e de seu sofrimento por uma pequena elite religiosa.

Pode ser o Islã hoje um retrato daquilo que o Ocidente foi antes do advento das luzes, momento em que a religião possuía um efetivo poder político e transcendental sobre corações e mentes e que unia os cidadãos em verdadeiras comunidades, ao contrário de hoje, quando a idéia de Deus segue o princípio narcisista-individualista de nossos tempos? Irá o Islã, algum dia, secularizar-se e seus líderes religiosos tornarem-se uma espécie de fantoches nostálgicos como é o Papa na atualidade? Qualquer que seja o cenário a se desenhar no futuro próximo, ainda teremos muitos anos de teocracias e líderes espirituais de diversos matizes a explorar questões políticas e atuar sobre os excluídos da globalização sob a mediação do discurso religioso – mas o Islã não está sozinho no monopólio do irracionalismo! Essa exclusividade é real apenas no contexto rasamente etnográfico dos “romances de burca”, e é uma pena que a leitura desses livros outorgue a um número cada vez mais expressivo de pessoas viciadas em best-sellers o direito de julgar 1,3 bilhões de muçulmanos tendo como ferramenta analítica, única e exclusivamente, esses mal escritos recortes tendenciosos da realidade.

Passivamente assistimos ao preocupante desmonte de uma série de mitos fundadores da chamada civilização ocidental. Rasgamos a declaração universal dos direitos do homem, herança da revolução francesa, e parece que estamos em vias de reverter os processos de descolonização do pós-guerra, em uma retomada de práticas extrativistas, desrespeito a soberanias nacionais e tentativas de imposição de valores que visam aniquilar as diferenças e promover a intolerância ou algum suposto choque de civilizações. Não aceitar a confusão entre os conceitos de resistência e terrorismo; entender que as mulheres muçulmanas, na sua maioria, não vivem cobertas por burcas, mas são advogadas, engenheiras, médicas, cineastas, jornalistas e professoras com ativa participação em suas sociedades; e ousar duvidar do que nos é informado pelas agências de notícias e intelectuais de diversos matizes — comprometidos com seus governos e seus próprios preconceitos, agindo em uníssono a fim de que tenhamos medo daqueles que ousam contestar a posição vassala que lhes cabe no latifúndio mundial — é condição necessária para que possamos promover um verdadeiro diálogo entre o Islã e o mundo tributário do Ocidente que, para ser realmente livre, precisa aprender a conhecer, compreender e respeitar as diferenças culturais.