quarta-feira, fevereiro 20, 2008

"Guantánamo do Afeganistão" reúne 800 presos

Os detidos na base americana de Bagram não foram acusados nem têm defesa legal

Ángeles Espinosa
Enviada especial a Bagram


"Eles têm a assistência de advogados?" O tenente-coronel David Accetta vira-se para o comandante Chris Belcher em busca da resposta, mas seu número 2 como oficial de Assuntos Públicos na Base Aérea de Bagram encolhe os ombros. "Não sei", responde Accetta, "ninguém me perguntou isso antes." Em algum lugar desse recinto situado a 60 km ao norte de Cabul, talvez não muito longe de onde se realiza a entrevista, "entre 600 e 800" detidos se encontram em um limbo legal, sem acusações formais, sem direito a defesa e sem um horizonte claro, porque os EUA consideram que "constituem uma ameaça para a comunidade internacional". São quase o triplo dos 275 internados em Guantánamo, e sua situação é muito menos conhecida.

Os oficiais tentam ser cordiais. Durante quase duas horas se esforçaram para explicar o que fazem suas tropas no Afeganistão, o que conseguiram nestes seis anos e aonde querem chegar. No entanto, a comunicação torna-se tensa quando esta correspondente pergunta sobre o centro de detenção da base, o Bagram Theater Internment Facility em seu jargão. "Normalmente não falamos sobre isso com jornalistas", explica Accetta.

O que começou sendo um mero centro de classificação de prisioneiros depois da derrubada do regime taleban em 2001 se transformou no maior e menos transparente centro de detenção do exército americano. Os militares não mostram em que lugar exato da base se encontra a prisão, que não admite visitas. Para os ativistas de direitos humanos, o problema é muito semelhante ao de Guantánamo, só que Washington conseguiu mantê-lo afastado da atenção da mídia. De fato, o número de presos aumentou desde que se interrompeu seu envio para o enclave cubano em setembro de 2004, para evitar a proteção legal a que pudessem ter acesso nessa penitenciária.

Apesar de o comandante Belcher explicar que não se trata de uma prisão secreta, tudo o que a cerca parece sê-lo. "Não posso lhe dar números exatos", responde Accetta em relação ao número de presos. "Entre 600 e 800" é o máximo que afirma depois de minha insistência. A margem é muito mais ampla do que entre 600 e 650 estimados há um mês pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Essa organização, a única que tem acesso ao centro de detenção de Bagram, queixou-se de que lhe ocultam os detidos.

Em uma demonstração incomum de mal-estar para um grupo que baseia seu trabalho na confidencialidade, seu diretor de operações para o Afeganistão, Pierre Kraehenbuehl, denunciou em dezembro passado que o CICV "não recebe notificação de todos os lugares de detenção e detidos", e em conseqüência disso "não pode confirmar que tem acesso a todos os detidos no Afeganistão". Em suas declarações, divulgadas no site do CICV, explicou que "o fato de ter acesso regular (a um lugar de detenção) não implica que não existam preocupações sobre as condições de detenção e tratamento".

Os militares negam que estejam ocultando prisioneiros. "O CICV tem acesso a todos os detidos do centro de detenção de Bagram", afirma Accetta. Então não há presos sem declarar? "Não que eu saiba." Claro que, segundo fontes do Pentágono ouvidas pela imprensa americana, entre sua detenção e seu registro se passam pelo menos duas semanas, durante as quais eles não existem oficialmente.

As cifras de detidos oscilam muito, segundo admitem as organizações de direitos humanos. Accetta explica que as detenções são "um processo em marcha; ocorrem periodicamente", mas esclarece que "isso não significa que todos os detidos permaneçam aqui; alguns são libertados, outros são entregues ao governo afegão". Em que porcentagem? Não se informam dados. Tudo o que se refere a esta prisão permanece na ambigüidade. Os porta-vozes não esclarecem sequer o tempo médio de detenção. "Não sei" é a resposta.

As explicações sobre quem está detido também não são muito mais claras. "Foram identificados como inimigos do Afeganistão ou como inimigos da paz e da estabilidade", responde Accetta. O que significa isso? "Que constituem uma ameaça para a comunidade internacional e não nos referimos só aos EUA, porque há diversas organizações terroristas que atacaram outros países, como a Espanha, e em conseqüência os vemos como uma ameaça global."

O tenente-coronel Accetta reconhece que não são criminosos e portanto não procede submetê-los a julgamento. "Estamos em uma zona de guerra, mas não se trata de uma guerra convencional na qual se enfrentam dois exércitos e se respeitam as convenções de Genebra", justifica. Insiste que eles não detêm ninguém sem provas. Então por que não os apresentam diante de um juiz? "Não tenho certeza de que quando detemos alguém em cujo domicílio encontramos material para fabricar bombas, isso esteja previsto na lei afegã", cita como exemplo.

As conseqüências da ilegalidade da prisão de Bagram vieram à luz em 2005 depois de um relatório de 2 mil páginas elaborado pelo próprio exército sobre a morte, fruto de maus-tratos, de dois prisioneiros afegãos identificados como Habibullah e Dilawar (no Afeganistão é comum ter só um nome). Os homicídios ocorreram em dezembro de 2002. Cerca de 30 militares foram investigados e a metade deles indiciada, o que não evitou que alguns dos envolvidos fossem destinados à prisão de Abu Ghraib.

O tratamento dos detidos parece ter melhorado depois daquele relatório e do escândalo das torturas na prisão iraquiana. Mas as instalações de Bagram deixam muito a desejar, segundo descrições de ex-prisioneiros e ex-militares colhidas pela imprensa americana. Trata-se, ao que parece, de células de metal como galinheiros, sem luz natural, nas quais deve ser muito duro enfrentar o inverno cru da estepe que cerca Bagram.

Os responsáveis militares sempre desculparam essas condições pelo caráter temporário da penitenciária. No entanto, seis anos depois de sua inauguração não há sinais de que vá ser fechada. Washington financiou uma ala de alta segurança na prisão de Pul-i Charki, perto de Cabul, mas os americanos parecem relutantes a entregar o grosso dos detidos aos afegãos. Accetta menciona a ausência de um Estado de direito (e as instituições jurídicas e policiais que lhe são inerentes). Desde sua abertura em abril passado até a última semana, 225 presos foram transferidos para o pavilhão D, incluindo 32 procedentes de Guantánamo, e os afegãos libertaram 12 deles.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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