sábado, novembro 24, 2007

O português no mundo árabe

Fonte: Revista Língua Portuguesa

14/11/2007


Refugiados palestinos que estudaram Português chegam ao Brasil e mostram os primeiros sinais de avanço da língua portuguesa no Oriente

Adriana Natali


No fim do mês passado, 38 palestinos desembarcaram em São Paulo, na primeira leva de refugiados vinda do campo de Ruweished, na Jordânia, a 70 quilômetros da fronteira com o Iraque. Eles serão reassentados em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde o Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) trabalha em parceria com as organizações Cáritas e Associação Antônio Vieira.


Nos quatro anos em que estiveram na Jordânia, os refugiados iraquianos se prepararam para viver no Brasil. O fator decisivo dessa preparação foi o aprendizado da língua portuguesa. O ensino do português a palestinos expulsos do Iraque após a invasão anglo-americana promete se ampliar na Jordânia. Um lote do recém-lançado Português para Falantes de árabe (editora Almádena), por exemplo, acaba de ser encomendado pelo Acnur. A obra é organizada por João Baptista M. Vargens, da UFRJ.


Mas em todo o mundo árabe, a nossa língua está se expandindo graças à implementação do ensino do português em colônias e universidades de alguns países, como a Síria. A divulgação do idioma e da cultura do Brasil entre os árabes começou a ganhar força em 2003, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva firmou um protocolo de intenções que consagrava a abertura de cursos de português em universidades locais.


Foi, no entanto, após a Conferência da ASPA (América do Sul - Países Árabes), promovida pelo Brasil em 2005 para aproximar as regiões, que o ensino do português ganhou, de fato, relevo.


- É no Líbano, seguido pela Síria, em razão de sua ligação com as comunidades sírio-libanesas no Brasil, que a necessidade do ensino do português ainda deve se fazer sentir de maneira mais sensível - explica o embaixador do Brasil na Síria, Eduardo Monteiro de Barros Roxo.


No início de 2006, dando seqüência à visita presidencial à Síria, o ministro da Educação, Fernando Haddad, prometeu a implementação da cadeira de língua portuguesa na Universidade de Damasco.


Doutor em Lingüística Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e professor do Setor de Estudos Árabes da UFRJ, João Baptista Vargens esteve na Síria, a convite do governo local, em abril do ano passado, para verificar as áreas de atuação para possíveis acordos entre a UFRJ e as principais universidades sírias.


- Especificamente, constatei os diversos métodos de ensino de línguas estrangeiras utilizados no Instituto de Idiomas da Universidade de Damasco.


Em Damasco


Nos meses seguintes, o MEC e a embaixada da Síria promoveram estudos para viabilizar o curso de português em Damasco. A professora Paula Caffaro, formada em Letras (português-árabe) na UFRJ, ministrou este ano dois dos primeiros cursos de português na universidade, para cerca de 20 alunos.


- A maioria dos alunos tem alguma ligação com o Brasil, ou são descendentes ou têm relação de trabalho. Os alunos são interessados e não encontram muitas dificuldades com o idioma, somente os verbos dão mais trabalho a eles - conta Paula.

Alguns alunos são brasileiros que não conheciam a língua portuguesa. Nasceram no Brasil e, ainda pequenos, foram para a Síria com os pais imigrantes, mas agora resolveram retornar à terra natal.


De acordo com o embaixador Eduar­do Roxo, este é o início das ações com cursos de português na Universidade de Damasco. Espera contar de forma regular com professores especializados e verificar a ampliação da demanda.


- O Brasil está à procura de mercados alternativos fora do eixo europeu-americano e se aproxima dos países árabes. Nós, professores de português e árabe, temos a obrigação de participar, contribuindo dentro de nossa área de atuação. Além desse interesse pontual, devemos nos lembrar dos laços históricos que temos com os árabes, via península ibérica e imigração síria e libanesa no Brasil - explica Vargens.



O professor estima que existam mais de 12 milhões de árabes e descendentes radicados no Brasil. Para ele, é preciso que seja implementada uma política conjunta entre o Ministério da Educação e o Itamaraty para que haja o incentivo da difusão do português do Brasil no mundo, nos moldes do Instituto Camões, em Portugal, o Cervantes, na Espanha, os centros culturais franceses, entre outros.


- A semente já foi plantada no Brasil, por meio do Instituto Machado de Assis, uma iniciativa do governo atual para ampliar a divulgação de nossa língua e cultura. Todavia, até agora, o instituto só existe no papel e não recebeu dotações orçamentárias para funcionar. Acredito que o que falta é uma ação segura, concreta, para que o Instituto Machado de Assis se torne realidade - explica.


Desafios


A produção do material didático usado hoje em universidades como a de Damasco e em campos de refugiados surgiu da experiência vivida por Vargens entre 1992 e 1994, quando ele ensinava português e cultura brasileira na Universidade Abdel Malik Essaadi, em Tetuão, no norte de Marrocos.


- Usava métodos de português para estrangeiros em geral e, muitas vezes, sentia a necessidade de confrontar aspectos da gramática das duas línguas, para salientar as diferenças. Em tais momentos, percebia quão importante seria a criação de um método próprio para árabes, os alunos teriam mais facilidade - explica o professor.


Português para Falantes de Árabe contextualiza em livro e CD 26 lições com a cultura brasileira, a partir de datas significativas do calendário nacional, como o Ano Novo, o carnaval e até o Dia da Consciência Negra.


O material foi escrito por Vargens e ex-alunas, como Geni Harb, Suely Ferreira Lima, Bianca Graziela da Silva e Heloisa Ellery de Menezes.


Muitas palavras da língua portuguesa têm origem árabe, dado o longo período de ocupação muçulmana, seja em Portugal (711-1249) ou na Espanha. Os sete séculos de dominação moura deixaram marcas na linguagem, especialmente em áreas como artesanato e agricultura. A influência lin­güí­s­tica que eles exerceram sobre a península ficou restrita ao léxico. Há inúmeras diferenças entre a gramática do árabe, uma língua semita, e a do português, idioma latino.


Por exemplo, o verbo árabe tem flexão de gênero, não existente na língua portuguesa. Há, também, no verbo árabe as flexões de número: singular, plural e dual, esta referente a duas unidades. Em português não existe o dual.


- Tais fatos demonstram a importância do estudo contrastivo entre as gramáticas da língua materna e da língua estrangeira que o aluno deseja aprender - explica Vargens.


Sete séculos


O namoro atual entre o português e o mundo árabe resgata, por tabela, a influência que o nosso idioma recebeu dos povos de fala árabe. Segundo Miguel Nimer, num importante estudo editado inicialmente em 1943 e reeditado em 2005 (Influências Orientais na Língua Portuguesa, pela Edusp), a península ibérica tinha profundas diferenças de raças e religião. Por isso, e apesar da ocupação ininterrupta de séculos, os povos conquistados não adotaram a língua do vencedor. O conquistador, por sua vez, "não houve por bem ou por mal, pela imposição de sua língua, usar de seu direito de conquista", defende Nimer. Com a indiferença e o total desprezo dos ocupantes árabes, não houve assimilação. A presença árabe é por isso modesta no espanhol e no português.


A difusão de vocábulos árabes nas línguas da Europa, adverte Nimer, não ocorreu devido à conquista dos muçulmanos, mas foi resultado da propagação e da vitalidade de toda uma civilização: a da cultura árabe, que é ainda uma fonte de mistérios para os falantes do português.


Palavras de origem árabe


Houve três períodos, com limites imprecisos, em que as palavras de origem árabe ou introduzidas por via árabe, entraram na língua portuguesa. O mais forte foi a presença muçulmana na península ibérica por oito séculos. Outro começou com a conquista de Ceuta pelos portugueses em 1415 e com a expansão portuguesa que durou até o século 18. O último veio até nossos dias por meio de empréstimos, principalmente do italiano e do francês.


Fato curioso são as palavras de origem árabe que tomaram acepções diferentes no Brasil e outras que entraram na língua como autênticos brasileirismos, não constando do vocabulário português, europeu e africano. Essas palavras foram incorporadas à língua pela presença negro-muçulmana no Brasil e pela imigração árabe, principalmente síria e libanesa.

Açafrão (azzafaran, amarelo)
Açougue (assok)
Açúcar (assukar deriva do sânscrito çarkara, grão de areia)
Álcool (alkohul, coisa sutil)
Alface (al-khaç)
Algarismo (alkawarizmi, nome do matemático árabe Abu Ibn Muça)
Álgebra
Azeite
Azeitona
Café
Damasco
Garrafa (garrafâ, frasco bojudo)
Harém
Haxixe
Limão (laimun deriva do persa limun)
Mesquita (masdjid)
Oxalá (in sha allah ou inshallah ou ua xá illáh, queira Deus)
Salamaleque (substantivo proveniente da fórmula de saudação árabe "as-salam'alaik", a paz esteja contigo!)
Xarope (sharab, bebida, poção)


Um texto com arabismos


No I Festival da Cultura Árabe, promovido pela Liga dos Estados Árabes no Brasil, em 1972, o professor Antônio José Chediak - um dos fundadores da Academia Brasileira de Filologia - mostrou o uso corrente das palavras de origem árabe em nosso idioma em texto de sua autoria. Embora destacados por Chediak, o professor Vargens afirma que há controvérsias sobre a etimologia árabe de "cabidela", "cáqui", "chita", "jeropiga" e "troço".


"Uma história. Suponhamos, primeiramente, um casal com um filho, em algum lugar do Brasil. Altair, recém-casada, mora nos arrabaldes ou arrebaldes de uma aldeia do interior, põe o seu vestido de chita e o xale. Pega o garoto, um azougue de menino, lava-o e passa-lhe talco. Se o garoto tosse, dá-lhe uma colher de xarope, empapa o algodão em cânfora ou alcânfora e faz massagem nas suas costas. Vai à cisterna, prende a azêmola na argola da manjorra, põe água na modesta jarra. Vai fazer café e adoça-o com saboroso açúcar-cândi. O marido, um mameluco, conhecido pela alcunha Boca-Torta, bem cedinho, já se levanta com alguns achaques-enxaqueca, põe as ceroulas (no interior muita gente ainda as usa), o terno cáqui, bem lavadinho com anil, toma um trago de conhaque de alcatrão São João da Barra ou, se não o tem, vai ao alambique, sorve um gole de jeropiga. Toma a tarrafa e vai pescar no açude.


Outras vezes, prefere caçar javali; limpa o azinhavre da espingarda de grosso calibre, sai com o fraldigueiro chamado Sultão e volta com algumas arrobas de carne às costas. À hora do almoço, Altair lhe traz umas azeitonas. Senta-se com ele, e principiam uma salada de alface bem regada a azeite. Vêm depois o espinafre, a cabidela, a carne ou peixe escabeche, ou com alcaparra, que ingere com arroz bem soltinho. Ela lhe oferece um prato com acelga ou celga, que rejeita. Prefere alcachofra, por causa do fígado. Vai tomando refresco de tamarindo. À sobremesa, uma boa laranja seleta.


Terminado o almoço, descansa, recostando a cabeça na almofada. A casa é modesta, de adobe, mas o alicerce é firme. As janelas não têm alizares. Num pequeno jardim, florescem açucenas ou cecéns e alecrim. Depois da sesta, sai a trabalhar. Mete algum dinheiro na algibeira, algum alimento no alforje e segue para o campo. Tem alguns alqueires de terra. De volta, pára no alfaiate para experimentar um terno. Depois, entra no armazém para algumas compras. Muita gente. Azáfama. À saída, um pobre, cheio de salamaleques, pede-lhe esmola. Não é um nababo, mas também não é um mesquinho. Dá-lhe uns níqueis. Um troço de policiais, com vistosos dólmans, passa ao som de tambores, caminho do aljube. É o reforço que chega. A região foi invadida por uma cáfila de assaltantes. O mameluco tira o chapéu. Passa um ataúde a caminho do cemitério. E retorna à casa."

Um comentário:

Anônimo disse...

quero aprender arabe.
que livros e cds voce me indicaria?
obrigado
afonso alves